Confira entrevista de Laura Greenhalgh, editora-executiva do jornal O Estado de S.Paulo, com o o 'bispo do Araguaia', dom Pere Maria Casaldáliga i Pla, ou simplesmente Pedro, como quer ser chamado. Na entrevista, a história da pastoral que desafiou militares e o Vaticano.
“- Veio falar de padre ou de índio? - Dos dois. - Então veio falar com dom Pedro. Mora ali, ó…
A pergunta, vinda de um freguês da lotação que transporta passageiros do pequeno aeroporto de São Félix do Araguaia até a avenida beira-rio, bate de sopetão, meio ríspida, como quem diz ‘dona, cê não é daqui’. A resposta curta, proteção de quem mal desembarcara, leva o matuto a meticulosidades: jornalista no pedaço. Juntar padre e índio, quem mais? É com ele. Padre, índio, freira, político, posseiro, grileiro, missionário, antropólogo, ambientalista, jornalista…Pra juntar tudo isso nesse fim de mundo, só ele. Mora ali, ó…
A casa do Bispo Emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia, o catalão Pere Maria Casaldáliga i Pla, ou Pedro, como quer ser chamado, nem remotamente lembra um palácio episcopal. Tem portas e janelas abertas para a rua. Tem paredes sem reboco, combinando com a rusticidade dos móveis, e um capricho feito de detalhes muito simples na arrumação da casa. Tem uma capelinha, também aberta, no terreno ao fundo. Entre a porta da rua e a capelinha, como fosse um ponto médio entre dois pontos cardeais, fica a mesa onde Pedro Casaldáliga despacha.
Se a casa não lembra palácio, a mesa também não lembra gabinete de trabalho. É desta mesa que se ouve, com sotaque catalão inconfundível, um ‘bem-vinda à nossa Prelazia’. Para os não-iniciados, a Prelazia de São Félix do Araguaia fica na porção amazônica do Mato Grosso, abrangendo 15 municípios numa área de 150 mil km2. Trata-se de uma circunscrição eclesiástica instituída pelo Vaticano no início dos anos 70, como acontece por esse Brasil afora desde a época dos jesuítas.
Porém, esta é uma prelazia que fez história. E dom Pedro, a figura central de um enredo marcado por enfrentamentos em distintos andares do poder - o social, o militar, o econômico, o eclesiástico.
A história da Prelazia e a vida do religioso da ordem dos claretianos são elementos imbricados. E foi justamente esta espessa teia de relações que levou o comitê do Prêmio Nobel da Paz a direcionar, nos últimos meses, sucessivos pedidos de informação para gente que conhece e estuda Pedro Casaldáliga. Como ele trafega o mundo dos sem-terra e o dos com-fazenda, estando sempre do lado dos primeiros? Como mantém a defesa dos índios e do meio ambiente, quando tudo joga contra? Como consegue ser cidadão do mundo vivendo há quase quatro décadas no fundão do Brasil? Como? Como? O comitê norueguês no Nobel da Paz foi encontrando as respostas, tanto que, dentre as 192 candidaturas examinadas este ano, a do bispo freqüentou a diminuta lista de finalistas. Era um dos prováveis ganhadores, como o economista bengalês Muhammad Yunus, que acabou levando. Pedro, que já fora indicado ao prêmio por instituições estrangeiras em pelo menos duas ocasiões - em 1992 e 2002 -, nem sabia que estava cotado em 2006.
Você veio me entrevistar e eu quero falar do arquivo. Não quero falar do latifúndio. É importante sempre voltar nesse ponto, mas vamos falar do arquivo que formamos aqui ao longo desses anos.
Dizem que já é um dos grandes arquivos da Igreja no Brasil, não sei. Garanto que é a maior instituição cultural do Mato Grosso. Isso, sim. Contém todo o nosso trabalho missionário na Prelazia. Tem o mundo indígena, o mundo rural, o mundo da Centro-América, o mundo eclesial, minha correspondência. Está praticamente tudo digitalizado.
O Arquivo Casaldáliga, que Pedro insiste em chamar de Arquivo da Prelazia de São Félix, é obra grande. São cerca de 250 mil documentos, divididos em grandes setores. Há desde informes paroquiais a documentos de relevância histórica. Documentos que contam a áspera luta pela terra no Brasil, falam da repressão militar e de governos, revelam a marcação cerrada do Vaticano sobre um religioso que veio em missão evagelizadora para o Brasil e enveredou pela Teologia da Libertação. Há mais de 50 mil cartas, entre as enviadas a Pedro e as respondidas por ele.
Cartas de gente simples e de poderosos. Cartas públicas e de teor sigiloso à época. Não há cartas íntimas, nem confessionais.
E tem imagens, fitas, objetos, incluindo prêmios e títulos que o bispo acumulou e agora repassa ao arquivo. Acumular é um verbo que o incomoda. Mantém-se fiel ao lema ‘nada possuir, nada carregar, nada pedir, nada calar e, sobretudo, nada matar’.
Em 2003, ao completar 75 anos, apresentou formalmente seu pedido de renúncia do cargo ao Papa, como reza o figurino. Porém, teve de esperar dois anos até que o pedido fosse acolhido e que se consumasse o processo de substituição. Pois, enquanto esperava, acelerou a organização do arquivo para doar cópias do acervo a instituições de diferentes localidades. Escaldado do fogo na palhoça, percebeu que a melhor maneira de perpetuar o acervo seria multiplicá-lo. Fora isso, tinha dúvidas sobre quem iria substituí-lo na Prelazia. Seria um bispo conservador e inculto? Seria insensível ao valor histórico da imensa papelada? Deu sorte: quem assumiu, há dois anos, foi dom Leonardo Ulrich Steiner, primo de dom Paulo Evaristo Arns, amigo de fé e batalhas do bispo catalão. Pedro diz que dom Leonardo é homem do diálogo, culto, sensível e organizado - como se queria.
A CNBB terá a documentação. A Universidade Católica de Minas Gerais também, assim como o Arquivo do Escorial, em Madrid, a Ordem dos Claretianos, em Roma, e o Arquivo Nacional da Catalunha. No ato de doação do arquivo, o secretário de Cultura do governo catalão, Ferran Mascarell, destacou: ‘A Catalunha ficou mais rica’. Pedro não compareceu à cerimônia, representado por dom Leonardo. Aos 78 anos e com mal de Parkinson, doença da qual fala às claras, já quase não sai da São Félix. ‘Houve quem me achasse desequilibrado. Agora posso justificar isso com minha saúde’, comenta, ironizando as mãos trêmulas. A cabeça funciona a mil. O humor vai bem, obrigado.O arquivo tem cara de Pedro e mãos de irmã Irene, religiosa da Congregação de São José que chegou a São Félix em 1971 e acabou por organizar a documentação que ia se avolumando em caixas. Para dar conta da missão, a religiosa fez curso de arquivista por correspondência. Formou colaboradores. E contou com voluntários, entre eles a ONG catalã Arquivistas Sem Fronteiras, cuja equipe passou meses em São Félix. Ainda que Pedro queira batizar o acervo com o nome coletivo, da prelazia, a documentação se organiza a partir da sua atuação pastoral e política.
Ora, se Aristóteles disse que todo homem é político por natureza, por que eu não posso ser? Sou um animal político. E um animal crente.
A documentação percorre seus 38 anos de vida no Brasil.
Ele chegou em 1968, em missão dos claretianos, num momento em que a ordem estava se adaptando às diretrizes do Concílio Vaticano II. Era preciso mandar religiosos para a região de Goiás e para o planalto boliviano. O catalão ofereceu-se para vir ao Brasil. Em 1970, criou-se a Prelazia e, no ano seguinte, Pedro foi sagrado bispo.
Ah, temos alguma documentação anterior a essa data, pois quando cheguei, assumi a ação missionária das Irmãzinhas de Jesus, ordem religiosa fundada por Charles de Foucauld. Que pioneiras! Temos os primeiros diários delas, escritos em francês, na aldeia dos tapirapés, nos anos 50. Agora, eu mesmo cheguei na ditadura, ano do AI-5. Fiz aqui um curso para missionários, decisivo. Nele aprendi o português, vi Morte e Vida Severina e li o livro sobre o Brasil que mais me tocou: Grande Sertão: Veredas, do Guimarães Rosa. É um poema e um romance ao mesmo tempo. E a melhor síntese de sertão que já vi. Aquilo me colocou no Brasil. Eu, que vinha do outro lado do mundo, trazendo uma bagagem de livros.
Outro fato marcante dos primeiros tempos no Brasil: a morte do missionário João Bosco Penido Burnier, em 12 de outubro de 1976, ex-diretor do Colégio São Luís, em São Paulo. É o próprio Pedro quem conta, durante entrevista ao Aliás na quinta-feira passada, por coincidência, 12 de outubro de 2006:
São 30 anos da morte de João Bosco. Aconteceu assim. Eu passava pelo município de Ribeirão Cascalheira quando me trouxeram a notícia de que duas mulheres eram torturadas numa delegacia.
Fui para lá e João Bosco, que nos visitava, quis ir junto. Quatros soldados nos esperavam com xingamentos. Dois deles não me conheciam. Eu me apresentei, conversamos apenas três ou quatro minutos. João Bosco lhes disse: ‘Olha, vou passar por Cuiabá e terei de contar ao superior de vocês o que estão fazendo aqui, maltratando mulheres inocentes…’ Daí veio o soco no rosto, a coronhada na nuca e o tiro de bala dundum. João Bosco caiu. Havia na porta da cadeia uma caminhonete guiada por um garoto de 12 anos. Pedimos que nos levasse ao postinho de saúde da Prelazia. Dois policiais foram embora, outros dois diziam que o tiro fora só para assustar…No posto,havia dois médicos de São Paulo que estavam aqui como voluntários. Um deles me disse: ‘Pedro, é grave. A massa encefálica está aparecendo’.
Foram 12 horas de agonia consciente e lúcida. Como bom jesuíta, João Bosco invocou várias vezes o nome de Jesus. Eu lhe dei a unção dos doentes. Tentamos um carro melhor para ir a Goiânia. Disseram até que havia um teco-teco na fazenda Tamacavi, que depois foi do Silvio Santos, mas não deu certo. Saímos na caminhonete mesmo, pois havia rumores de que a polícia viria nos aniquilar. Na manhã seguinte fomos a Goiânia e lá ele veio a falecer, às 5 da tarde. O martírio de João Bosco me marcou muito, pois ele me substituiu na morte. O tiro era para mim.
Este crime se insere na longa seqüência de confrontos em que Pedro Casaldáliga se viu envolvido nas cercanias e lonjuras do rio Araguaia. Ameaças de morte continuam chegando. Provocações, idem. Recentemente a Prelazia se manifestou contra a absolvição de um pistoleiro cujo apelido faz jus à fama: Luiz Bang. Há um certo Calixto, ex-policial, pseudo-jornalista, tipo excêntrico que só veste roupas de camuflagem na selva, que escreve reportagens chamando Pedro Casaldáliga de ‘monstro’ e ‘bispo do mal’. Conflitos da terra não se resolvem, como a situação na fazenda Suyá-Missu. Em 1960, uma agropecuária passou a controlar a área, expulsando os índios xavantes. A fazenda mais tarde passaria para o grupo italiano Agip, que, em 1992, pressionado por ONGs, concordou em devolver 165 mil hectares para as tribos. Isso não aconteceu e, nos últimos anos, posseiros foram ocupando a área. Resultado: hoje brigam os índios, primeiros moradores do lugar, os posseiros, clientes de uma reforma agrária emperrada, e grupos econômicos com interesses na região.
Minha vida nada vale. O que tem valor são as causas que dão sentido à vida. Isso tudo era terra de ninguém. Do Xingu até a ilha do Bananal, da fronteira do Pará até Ribeirão Cascalheira, esta foi a área que recebemos para a Prelazia. Não havia nada onde hoje existem 15 municípios. Não havia escola, posto de saúde, comércio, nada. São Félix pertencia ao município de Barra do Garças, que fica a 700 Km daqui! Hoje, bem ou mal, temos uma infra-estrutura.
Chegamos num momento difícil, pois havia a guerrilha no Araguaia. De vez em quando, um avião da FAB rondava por aí. Nós, padres, ou éramos vistos como guerrilheiros ou braço eclesiástico-cultural da guerrilha. Daí a repressão que sofremos. Índios começaram a ser expulsos. Posseiros começaram a aparecer. Peões viviam como escravos do latifúndio. O primeiro baque, quando cheguei, foi sentir distâncias. Assim, no plural. Distância geográfica, distância cultural, distância do mundo que eu chamava de civilizado. O segundo foi sentir minha impotência.
Parte da documentação registra o difícil contato com a cúpula do Vaticano. São documentos com timbre da Santa Sé, revelando os limites de uma instituição organizada de forma monolítica para entender a ‘opção preferencial pelos pobres’.Guardam-se nessas pastas informações sobre as tentativas de expulsão do bispo do Brasil.
Foram pelo menos cinco, articuladas por setores ligados ao regime militar e à própria Igreja.
Numa delas, o papa Paulo VI reagiu: ‘Tocar em Pedro seria tocar em Paulo’. Como há o contato tenso com João Paulo II, desconstrutor do comunismo, que mais tarde chegaria a declarar que a Teologia de Libertação, na América Latina, ‘não é só moralmente aceitável como socialmente necessária’. E há, por fim, o embate com o cardeal Ratzinger, hoje Bento XVI. O então chefe da Congregação para a Doutrina para Fé cobrou o compromisso de Pedro Casaldáliga com cânones e dogmas da igreja. Bateu forte na recusa do bispo de São Félix em cumprir as visitas ad limina ao Vaticano, idas periódicas nas quais deveria prestar contas do trabalho pastoral. Pedro considerava tais viagens caras e inócuas.
Interpelado pela Congregação, teve de comparecer. ‘Por que antes não rezamos um Pai Nosso juntos?’, teria sugerido a Ratzinger, quando o cardeal começou o interrogatório.
Como está a igreja na época de Bento XVI? Hoje temos que partir de uma clave mais larga. Já não podemos pensar a igreja fechada em si mesma. Temos de pensá-la com portas, janelas, vitrôs e até cúpulas abertas. A saída é: diálogo ecumênico, entre igrejas, e diálogo inter-religioso, entre todas as religiões. Poderá ser um lado bom da globalização. Ainda acredito que a mudança virá de baixo para cima. As comunidades eclesiais de base (CEBs) estão funcionando.
Passado aquele momento de irritação, de coice mesmo, hoje trabalham de maneira serena, tentando mudar estruturas.O caminho é o diálogo. A Igreja Católica tem uma longa tradição ocidentalista, europeísta e romana. Temos passado séculos distantes ou em briga com o mundo islâmico. Eu mesmo fui criado na cultura espanhola, entre adágios severos contra os árabes. Quem é o padroeiro da Espanha? Santiago ‘Matamoros’!
Não é só de atritos com o poder que trata o arquivo. Nesses anos todos, Pedro militou na poesia. Tem inúmeros livros publicados no País, outros tantos fora. Na Espanha, compilam-se seus diários e, em breve, ele lançará uma nova coletânea no Brasil, Versos Adversos.
Comecei a escrever poesia aos 11 anos e não parei mais. No fundo, todos somos poetas, mas alguns exercemos… Tenho poemas bem brasileiros. Por exemplo, ‘Cemitério de Sertão’. É o cemitério de Serra Nova, no Mato Grosso. Indo a cavalo, vejo na estrada três cruzes e flores de plástico. Aquilo me tocou. Tenho um livro de poemas breves, chamado Cantigas Menores, que foi feito só em viagens de ônibus. No ônibus, entrego a vida a Deus e ao motorista. Então aproveito para fazer poesia e cantar.Canto baixinho, mas canto.
Gosta é de brincar com palavras. Aprecia a precisão das frases de pára-choque de caminhão e as sacadas de certas propagandas. Seria publicitário se não fosse padre. Ante a incredulidade da jornalista, oferece um hai-kai, embalagem de suas convicções.
Tudo é relativo. Menos Deus e a fome!”
* Fonte: Publicado em O Estado de S. Paulo, Caderno Aliás, A Semana Revista, domingo, 15 de outubro de 2006, p. J8.
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